Imagine você ter apenas uma casa e poder oferecê-la como garantia para vários empréstimos em diferentes bancos?
Esta possibilidade está sendo proposta pelo governo como forma de melhorar o acesso da população ao crédito. Ela tem o objetivo de “destravar” a liberação de empréstimos e financiamentos, reduzir os juros e as taxas envolvidas nas operações e permitir que instituições financeiras tenham mais facilidade de tomar a garantia dada pelo cliente para a obtenção dos recursos.
O projeto é chamado de Novo Marco de Garantias e envolve a entrada de novos atores no mercado financeiro brasileiro que desempenhariam a função de administradores destas operações de crédito, as IGGs – Instituições Gestoras de Garantias. Elas seriam supervisionadas pelo Banco Central, assim como já ocorre com bancos e outros agentes financeiros no país.
Além dos imóveis, a proposta visa permitir que máquinas, estoques de produtos finalizados e até mesmo matérias-primas adquiridas pelas companhias possam servir como garantia para novos financiamentos.
O projeto de lei também prevê o fim do monopólio da Caixa Econômica Federal sobre as operações de penhores, permitindo que outras instituições financeiras realizem operações de penhor de bens.
A proposta foi elogiada pela Federação Brasileira de Bancos (Febraban) que, em nota assinada pelo presidente Isaac Sidney, disse que a medida é inclusiva porque amplia as garantias para a tomada de crédito. “Mais famílias e empresas terão a oportunidade de oferecer garantias em suas operações de crédito e, com isso, ampliar a sua capacidade de tomar empréstimos a taxas mais baixas”, afirmou.
Incentivo ao endividamento?
A dúvida em relação à novidade é até que ponto a medida ajudaria pessoas físicas, pequenos empreendedores e empresários no acesso ao crédito ou levaria este público a uma maior exposição ao endividamento?
De acordo com Carolina Avancini, especialista em crédito imobiliário da BlueMacaw, a possibilidade de ceder uma fração ideal do imóvel como garantia permite ao devedor acessar mais de uma dívida de acordo com a sua necessidade.
Ela explica que, em geral, as instituições financeiras trabalham com garantias imobiliárias de acordo com o LTV (loan to value) – valor determinado para o imóvel que cobre o saldo devedor da dívida em um percentual pré-definido.
Ainda segundo Carolina, ao longo do tempo, cada instituição financeira pode determinar um LTV máximo. “Conforme as dívidas forem sendo pagas, elas podem ir liberando mais uma fração para ser novamente cedida para um novo endividamento”.
A especialista vê como principal vantagem a possibilidade de constituir uma garantia real para mais dívidas, o que contribuiria para o barateamento das mesmas. “As dívidas clean – sem garantia – são no geral mais caras do que as dívidas com garantias atreladas”, explica.
No entanto, de acordo com ela, um dos perigos de compartilhar uma garantia, para o devedor, é a possibilidade de um único credor determinar a execução da garantia. “Isso resultaria numa cascata de pagamentos não programados de diversas dívidas”, afirma.
Única garantia, diferentes credores
Outra questão relacionada à proposta do Marco da Garantia é sobre como um único bem poder ser tomado por diferentes instituições em caso de falta de pagamento de um dos empréstimos.
Em entrevista coletiva à imprensa no último dia 25, o subsecretário de Política Microeconômica e Financiamento da Infraestrutura Emmanuel Sousa de Abreu disse que a extensão da alienação fiduciária – concessão do imóvel como garantia nas operações de crédito – valerá em negociações realizadas num mesmo banco.
A afirmação divergiu da proposta inicial apresentada pelo governo no evento que precedeu a entrevista. Os detalhes da proposta ainda serão regulamentados pelo CMN, o Conselho Monetário Nacional.
Segundo Celina Vaz Guimarães, sócia da BlueMacaw e responsável pelo relacionamento com investidores, tudo vai depender de como a lei vai regulamentar a execução das garantias, e se haverá uma prioridade no pagamento dos credores.
Ela faz um paralelo com o mercado de crédito nos Estados Unidos, que pratica o uso de um único imóvel como garantia para mais de uma operação em diferentes instituições. “Lá, temos o chamado ‘second lien’ – segundo penhor, em inglês – mas existe uma ordem em caso de execução das garantias para o recebimento dos valores. A instituição que fez a primeira penhora recebe primeiro, e os valores residuais vão para a instituição que fez a segunda penhora”, explica.
Risco de uma crise subprime brasileira?
A grande crise financeira de 2008 que afetou o mundo inteiro teve origem nos Estados Unidos com as chamadas hipotecas subprime, nas quais os clientes ofereciam praticamente nenhuma garantia em troca dos financiamentos.
Com a desvalorização acentuada dos imóveis, alto índice de inadimplência e as dívidas destas operações pulverizadas entre instituições de diferentes países – os chamados créditos podres – houve uma quebradeira geral de instituições financeiras.
O Brasil foi um dos países menos afetados pela crise devido à legislação local que não permitia, naquela época, este tipo de operação pelos bancos, seguindo regras rígidas determinadas pelo Banco de Compensações Internacional (BIS), em Basileia, na Suíça.
Para Celina Vaz Guimarães, o paralelo entre a crise do subprime e a proposta do governo para o crédito é o valor da garantia. Se o valor do bem sobe, o devedor teoricamente poderá tomar mais crédito, ou seja, fazer outras dívidas.
“O risco é o mesmo do mercado norte-americano, onde houve a desvalorização dos bens – no caso, os imóveis dados em garantia. Os empréstimos ficaram a descoberto, sem garantias suficientes para cobrir o saldo devedor”, explica.
Luciene Miranda é repórter especial e colunista na Elas Que Lucrem